Ele disse que não queria mais viver. Alguns
processos de hospitalização e luto são bastante clássicos, mas eu não estou
aqui para falar de psicologia. Eu quero falar é do que eu senti; E senti que diante da face
da morte, nada, absolutamente nada, é tão importante. Bem óbvio, entendo, mas me
deixe contar: Um senhor caiu da carroça com que trabalhava. Fraturou a coluna,
ficou tetraplégico. Machucou a perna e, devido à diabetes, precisou amputá-la.
Há alguns dias ele estava trabalhando, firme. Agora estava diante de mim,
emagrecido, astênico, apático. Ele era de uma simplicidade cativante e de uma
tristeza comovente. Durante seu discurso contido, uma frase sobressaiu às
outras e, confesso, num ato egoísta, demorei para voltar a entender o que ele
continuava dizendo, tamanho meu choque. Ele disse, num sopro que saía do vão
que existia entre alguns dentes, e com a imponência de quem não tem mais nada a perder: “A vida é coisa tão bonita, né?”. Eu calei.
Ofereci-lhe o silêncio merecido depois do impacto de uma constatação tão
simples. E, mesmo embebida em toda aquela atmosfera do sofrimento dele, a parte
triste da história vem agora... Eu me senti do tamanho de uma ameba. Corei. Fui
para casa agradecendo o soco no estômago e, enquanto refletia sobre as “coisas
da vida” e suas fragilidades, pensei que havia dado um passo adiante na
tentativa de ser alguém mais espiritualizada e menos materialista. Aconteceu
que alguns dias passaram, meus pobres probleminhas continuavam lá, e foram
turvando a frase “a vida é coisa tão bonita, né?” da minha memória. Há um efeito
sanfona na alma. Num ato inconsciente, voltei a ser pequena. Esbravejei por
causa da antena da TV, lamentei alguns quilinhos à mais, reclamei das contas à
pagar e praguejei a semana longa e cheia
de trabalho. Aquele senhor me daria com as muletas nas fuças se pudesse me ver
agora. Torço para encontrar novos mentores como ele, até que eu aprenda algo
enfim. Ele sabia que cada um de nós é capaz de dar pesos diferentes aos mesmos
fardos e que a dimensão das nossas alegrias e tristezas não devem,
necessariamente, ser calculadas com nenhuma base externa... Mas, ainda assim, tê-lo
visto naquele momento de lucidez tamanha (ainda que envolto em dores da carne e
da alma), dissolveu, pelo menos por um instante, a minha miopia diante da vida.
E que grande instante foi aquele, senhores, que imenso instante.
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