O barulho enferrujado e antigo que a porta fazia quando ele
entrava, só fazia com ele. Os sapatos marchando escada acima, sem ver, ela já
sabia que calçavam os pés dele. A discussão pelo controle remoto, cujo fracasso
dela sempre era anunciado com um sorriso quase perverso, só existia com ele. O
chuveiro pingando daquele jeito, só ele conseguia deixar. Os pães mais branquinhos pra ela, só
ele se esforçava pra guardar. Os seus dedos, irritantes, estalando, só o olhar dele
sabia calar. O perfume bom, só ele sabia dosar. Os ruídos todos, que ninguém
mais faz, os cheiros todos que ninguém mais exala, causam medo aos seus ouvidos
e nariz, que nunca entendem de esquecimento.
Havia algumas contas a serem pagas e uma breve viagem marcada.
Havia comida na geladeira para o jantar e roupas sujas do futebol de domingo,
bagunçando a área de serviço. Havia um
silêncio cúmplice no lugar desse deserto mórbido em que a sala se transformou. Por
enquanto, não há mais nada. Os sentidos dela ainda se aguçam, mas murcham
perplexos com os gritos da ausência. Será assim por enquanto. Não haverá mais
brigas, nem esperas, nem divisões. O café vai esfriar enquanto ela gira a xícara
com o dedo indicador, a louça vai tomar a pia e a poeira, todo o espaço. Haverá
poeira nos livros, no controle remoto, haverá poeira na cama, e no coração. Haverá
poeira enquanto não houver tempo suficiente. E talvez nunca haverá.